Quantas vezes nos alimentamos por dia e paramos para pensar na origem e qualidade do nosso alimento? Como ele foi feito, por quem foi produzido ou de onde veio? Acredito que poucas vezes. O simples ato de abrir a geladeira ou ir ao supermercado e escolher o que levar para a casa é algo tão natural, que é quase automático para a maioria das pessoas. Tão semelhante quanto apanhar um fruto em uma árvore e consumi-lo de imediato. Isso indica o nível de confiança que temos em relação aos produtos que comemos ou consumimos.
Nem sempre foi assim… alguns anos atrás – na época dos nossos avós ou bisavós – era comum o consumo de produtos regionais, produzidos por pessoas da comunidade ou por eles próprios, que conviviam e coexistiam. Conhecia-se quem fazia o queijo, o pão, quem plantava o arroz ou o feijão. O nível de industrialização das atividades era baixo e grande parte dos alimentos eram produzidos de modo artesanal, sendo sua disponibilidade limitada e sazonal.
Com a industrialização das atividades agrícolas e a crescente demanda por qualidade e quantidade, a produção de alimentos através dos progressos no melhoramento genético de plantas e animais, assim como nos avanços sanitários e precisão da nutrição animal e vegetal, bate recordes a cada ano. Vivenciamos uma “era áurea” na oferta de alimentos em larga escala e diversidade para a população, sendo a produção suficiente para toda a humanidade. Excetuando-se problemas de logística, distribuição, desperdícios, má distribuição de renda, etc. a produtividade (produção/área) atual é superior a qualquer predição realizada no passado, o que coloca em xeque a teoria Malthusiana sobre o crescimento populacional e a produção de alimentos.
Em contrapartida, nem sempre há simbiose entre quantidade e qualidade, e as distâncias entre o produtor, o produto acabado e o consumidor são cada vez maiores. A industrialização proporcionou maior tempo de prateleira e durabilidade, dispensou da sazonalidade a oferta de vários produtos, porém trouxe consigo algumas mudanças, como: alterações em características organolépticas, adição de conservantes, alimentos ultra processados e semiprontos, doses elevadas de sódio ou açúcar.
A relação entre quantidade produzida e qualidade oferecida nos remete aos conceitos de sustentabilidade dos sistemas de produção e segurança alimentar. Sustentabilidade é assegurar que a capacidade natural de renovação dos recursos (tempo e espaço) seja maior que a capacidade de transformação/produção imposta pela humanidade nos sistemas, caso isso não ocorra, o sistema entrará em colapso. Já o termo “segurança alimentar” pode se referir às garantias de acesso ao alimento por um determinado país ou população, como também à qualidade desse alimento, em função de não apresentar riscos biológicos, químicos ou físicos.
A notoriedade relacionada à segurança alimentar originou-se após a Segunda Guerra Mundial, decorrente do fato de mais da metade da Europa ter sido destruída, impossibilitando de produzir o seu próprio alimento. Durante o processo de reconstrução, foi necessário importar grande parte dos alimentos para a população local e criar regras para a compra dos alimentos vindos de outros países. Uma delas é com relação à sua segurança de consumo, sendo imprescindível que estejam livres de agentes patogênicos ou deterioração, dentro do prazo de validade e isentos de contaminação (BELIK, 2003).
Hoje, é impossível dissociar os efeitos dos sistemas de produção ao meio ambiente, saúde humana e saúde animal. Essa associação entre esses elos é chamada de One Health (saúde única ou uma saúde) e incentiva novas políticas de gestão dos meios e saúde, além dos riscos provenientes de poluição, degradação de terras, desastres, água potável, fornecimento de alimentos, controle de pragas, mudanças climáticas e muitas outras (FAO, 2020).
Cadeia de produção avícola
O setor avícola brasileiro apresenta-se em ascensão contínua. Segundo estudos feitos pela EMBRAPA (2018), houve um aumento mundial na demanda de carne de frango e, atualmente, o Brasil é o maior exportador e o segundo maior produtor dessa proteína no mundo. Mas com produções em grande escala e cercada por especulações, como confiar no produto entregue ao mercado?
Um dos pontos positivos é a tecnologia empregada nessa atividade e a detenção de todo o ciclo e cadeia produtiva. Tem-se o controle desde a produção dos ovos que vão gerar as avós do frango, até o abate e comercialização do produto final, seja in natura ou processado. Na questão da tecnologia, grande parte dos galpões de criação apresentam sistemas inteligentes de controle ambiental, ou seja, todas as variáveis em seu interior (temperatura, umidade, velocidade do ar, produção de gases nocivos, etc.) são controladas automaticamente, além da preocupação constante e exames periódicos para detecção de bactérias ou outros organismos patogênicos aos animais e aos humanos.
Hoje é possível produzir mais, sem que seja necessária abertura de novas áreas. As criações confinadas em galpões garantem um nível de produtividade e conforto animal. É possível monitorar e controlar o gasto de água, assim como aproveitamento de energia solar para suprimento de energia elétrica. Os dejetos (todos misturados na cama) vão para um sistema de compostagem e, posteriormente, podem ser comercializados ou utilizados em lavouras. A nutrição está voltada para atender ao máximo as exigências de produção e mantença dos animais, sem que haja excessos ou deficiências de nutrientes nas dietas, acarretando também em menor excreção destes nutrientes não digeridos ao meio ambiente.
Toda a cadeia produtiva de avicultura passa por severas fiscalizações, em todas as esferas: produção e reciclagem de resíduos, abate em locais com serviço de inspeção sanitária, uso de antibióticos de modo indiscriminado e na procedência dos pintos ou ovos. Sejam grandes empresas integradoras ou produtores independentes, até a chegada na mesa do consumidor final.
Vale ressaltar, neste contexto, os avanços do melhoramento genético nas linhagens comerciais que, em conjunto com toda tecnologia empregada na produção, possibilitaram a diminuição da idade de abate dos frangos para 42 dias, sem que, com isso perdessem eficiência, conseguindo colocar aves mais pesada e diminuindo os custos finais de produção. Além de boa genética, os produtores também investem nas boas práticas de produção, que compreendem: a qualidade do alimento ofertado ao lote, bem-estar animal, rastreabilidade e a biosseguridade das granjas, no que diz respeito às medidas para evitar a entrada e propagação de doenças no plantel, assegurando a qualidade e segurança dos alimentos, a saúde dos animais e o bem-estar dos trabalhadores.
A busca pela qualidade da carne continua no transporte dos animais da granja para a indústria de processamento. Todo esse processo obedece procedimentos de bem-estar, desde o preparo e embarque dos animais na granja até o trajeto e desembarque nos frigoríficos. Estas normas e procedimentos são decisivos para a qualidade final da carne, além de proporcionar a minimização de riscos e perdas econômicas, melhorar as condições de trabalho e evitar riscos de contaminações por microrganismos patogênicos às aves e aos humanos como, por exemplo, a Salmonela.
No abatedouro, todas as aves são inspecionadas e as que apresentam lesões ou contaminações por rompimento intestinal ou bile são condenadas. A temperatura do local e o tempo de abate são rigorosamente controlados para manter a qualidade da carne e entregar um produto confiável. As aves, após o abate, devem ser refrigeradas à temperatura de -1ºC, e essa temperatura deve ser mantida durante o transporte e comércio.
Há uma grande demanda internacional para a retirada de moléculas de antibióticos, usadas como promotoras de crescimento nas rações. Esses produtos eram utilizados para controlar a flora bacteriana intestinal, eliminando possíveis bactérias patogênicas. Os argumentos para retirada dessas substâncias se baseiam na prevenção ao surgimento de superbactérias, com genes resistentes a antibióticos destinados a saúde humana (BARBIERI,2015). Para se adequar a essa nova demanda, as empresas de nutrição estão investindo em estudos e pesquisas com produtos naturais (fitoterápicos, óleos essenciais, ácidos orgânicos, etc.) que sejam capazes de promover a saúde intestinal das aves e dar condições para que o lote se desenvolva saudável e com um nível adequado de produtividade.
O principal adversário que a avicultura enfrenta, atualmente, são as fake news. Há uma avalanche de desinformações que circulam com o único intuito de tirar a credibilidade do sistema de produção avícola, sendo a principal delas a utilização de hormônios, sejam eles na ração ou injetáveis para promover o maior ganho de peso e desenvolvimento dos frangos de corte… isso é mais um mito que cerca o setor. A legislação brasileira, através da instrução normativa nº17 de 18 de junho de 2004, publicada pelo Ministério da Agricultura Pecuária Abastecimento (MAPA), traz em seu primeiro parágrafo a proibição da administração, seja pelo alimento ou injetável na produção de aves, substâncias com efeito termostático, androgênico, estrogênicos ou gestagênicos, com a finalidade de estimular o crescimento, bem como a eficiência desses animais. Ou seja, é proibida por lei (nacionais e internacionais) a utilização de hormônios nas criações avícolas, além de ser economicamente inviável e improdutiva.
Cadeia de produção suinícola
O Brasil, além de possuir aptidão natural para produção de alimentos, apresenta elevado status sanitário nos planteis de aves e suínos, sendo um dos poucos países produtores de aves no mundo que nunca registrou foco de Influenza Aviária, e há mais de 40 anos não registra um caso de Peste Suína Africana. Ambas as doenças são de notificação obrigatória, e limitariam o acesso do país aos mercados mais exigentes. Esse sucesso se dá graças ao esforço de produtores e prestadores de serviço que têm como marca a manutenção da biosseguridade e boas práticas de produção, assim como bem-estar animal.
Em 2015, o Brasil se consolidou como o quarto maior produtor mundial de carne suína, com 3,6 toneladas produzidas, posição que se mantem até hoje. Mas para competir no mercado internacional, há uma cobrança crescente por parte dos consumidores quando se trata de bem-estar animal, sobretudo a exigência de alimentos seguros, sem traços de antibióticos ou outros aditivos, como a ractopamina. Faz-se necessário investir em mão de obra especializada e em sustentabilidade e gestão racional da água e demais recursos.
Outro ponto crítico é o preconceito em relação à carne suína. Em um passado não tão distante, a criação de suínos era feita de forma caseira e bastante rústica, e os animais tinham aptidão para produção de carne e banha. Os animais não recebiam ração balanceada, quase sempre eram alimentados com sobras de alimentos humanos e restos de hortaliças. Como as criações eram ao ar livre, os suínos, que possuem glândulas sudoríparas praticamente afuncionais (Ingram, 1965), possuem o hábito de chafurdar na terra e na lama, arremetendo a algo sujo e que se alimentava de sobras.
Felizmente, essa realidade mudou muito nos últimos 50 anos. Juntamente com a avicultura, a suinocultura emprega alta tecnologia em manejo e nutrição, constante melhoramento genético e avanços sanitários consideráveis, sendo hoje impraticáveis comercialmente as criações de “fundo de quintal” com restos de comida.
O uso de híbridos comerciais provindos principalmente do cruzamento das raças Duroc, Large White, Landrace e Pietran, objetivaram aprimorar a qualidade da carne suína disponível ao consumidor. De acordo com ROPPA (1998), desde 1980 o suíno perdeu 31% de seu nível de gordura, 14% de calorias e 10% de colesterol. O percentual de carne magra na carcaça que era de 50% subiu para 56% a 58%, e espera-se que até a virada do milênio chegue aos 62%. No suíno atual, apenas 30% da gordura se encontra localizada fora de sua pele (toucinho), sendo que no interior dos músculos há apenas 1,1 a 2,4% de gordura, o que é o mesmo que no frango, e ainda menor que nas carnes bovina (2,5%) e ovina (6,5%). O mesmo autor cita que a percentagem de gorduras instauradas (65%) é maior que a de saturadas (35%), assim como o nível de colesterol contido na carne de um suíno moderno é semelhante ao de outras carnes (bovinos e aves). Assim, há uma visão errônea sobre a carne suína ser gordurosa, quando na verdade é uma das mais nutritivas, rica em vitaminas B6, B12, tiamina, riboflavina, cálcio, fósforo, zinco e ferro.
Quando se compara a ingestão de calorias da carne suína com outros alimentos constatamos que ao consumir 150 gramas de lombo cozido ingere-se cerca de 270 kcal, o que equivale a menos de meio hambúrguer (300kcal) ou 150 gramas de batatas fritas (400 kcal). Finalizando-se as comparações, em apenas 120 gramas de pizza calabresa encontram-se cerca de 345 kcal.
Além do investimento em linhagens de excelência, que gerou um grande avanço no melhoramento genético de suínos, seguindo os padrões exigidos pela indústria, houve uma melhora na eficiência dos animais, ou seja, sua capacidade de transformar o alimento ingerido em músculos (posteriormente, carne), com um melhor aproveitamento de carcaça, eficiência em conversão alimentar e taxas de crescimento.
Atualmente, grande parte dos antibióticos promotores de crescimento estão com uso restrito ou proibido em criações comerciais. Nesse cenário, entram em cena fitoterápicos, óleos essenciais e ácidos orgânicos, com ação antimicrobiana ou moduladores da microbiota intestinal. Diversos estudos apontam resultados positivos em desempenho, aproveitamento de carcaça e na modulação da microbiota e qualidade intestinal. Porém, quando comparados com antibióticos convencionais, ainda há uma queda no desempenho.
Concluímos que, atualmente, a percepção dos consumidores vai além do preço dos produtos que consomem. Há demanda por informações que vão desde o nascimento dos animais e os devidos tratos de manejo até o produto final nas gôndolas de supermercados ou açougues. Se a agroindústria e o produtor, sejam pequenos ou grandes, não atenderem às normas de respeito ao meio ambiente, demanda racional de recursos, bem-estar animal, boas práticas de fabricação, higiene e sanidade do rebanho, possivelmente estarão fora do mercado em um futuro próximo. Esse espaço criado devido às novas demandas e exigências de um mercado que recebe uma carga gigantesca de informações, sejam verídicas ou falsas, deve ser preenchido com o conhecimento dos técnicos do setor (zootecnistas, veterinários, agrônomos, entre outros) e demonstrados através de estudos e a ciência aplicada para disseminar as fake news e mitos propagados indiscriminadamente.
Outro fato importante é a noção e conhecimento da indissociabilidade entre saúde animal e saúde humana, já que ambos estão interligados e não podem ser analisados de forma separada. Diversas doenças e zoonoses são decorrentes dessa associação e, mais uma vez, as boas práticas de manejo sanitário, uso racional de medicamentos e respeito aos animais, assim como suas particularidades nos sistemas de criação, são fundamentais nos processos de produção de alimentos saudáveis e nutritivos.
Co-autoras: Haltiane Bárbara Alves da Silva
Thaliane Silveira de Souza
Nutrição Animal – Agroceres Multimix
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